| O Mercosul, como é natural, suscita  algumas interrogações acerca de sua evolução futura. São dúvidas que talvez  reflitam a existência de um problema de credibilidade em torno do projeto de  integração. Muitas das indagações formuladas são de natureza econômica; outras  de natureza jurídico-institucional e política. E a estas que iremos nos referir  neste trabalho. Tratam de especulações cabíveis, se for  levada em conta a experiência passada de integração econômica regional, assim como  o fato de que, com o avanço no sentido da consecução dos objetivos de longo  alcance definidos em 1991 no Tratado de Assunção, se ingressa nas fases mais  complexas por que passa qualquer projeto de integração baseado no consenso de  nações soberanas que desejam preservar certa margem, que pode mesmo ser ampla,  de ação independente. Por um lado, a experiência vivida (ALALC,  ALADI, Grupo Andino, MCCA e inclusive o período do PICAB) revela a propensão,  em nossa região, para processos de integração cujo ciclo tem início sob  expectativas animadoras - e, sobretudo festejos e termina em grande frustração.  No passado, a distância entre o objetivo que se buscava alcançar no momento da  fundação de um projeto c o que depois se tornou realidade mostrou ser enorme. A  tendência da integração econômica, como projeto tem sido de passar em curto  prazo de uma colocação prioritária na agenda das questões decisivas dos  governos fundadores ao plano da irrelevância. A experiência indica, por sua  vez, que esse caminho é tomado tão logo se manifesta a tendência entre os  governos - muitas vezes por pressão empresarial - de diluição dos compromissos,  flexibilização ao máximo dos instrumentos e dilatação ate o infinito dos prazos  originais. Via de regra, esse comportamento responde à percepção da  incompatibilidade entre o cumprimento dos compromissos originalmente assumidos e  as exigências de novas realidades econômicas de curto prazo. Será ele produto  de irrealismo na definição de objetivos e instrumentos? Será produto de reações  coercitivas de interesses particulares afetados? Será produto de mudanças  profundas nas circunstâncias que deram ensejo ao processo de integração? O fato  é que o ciclo de "expectativas animadoras - frustração" é parte da  história comum e recente que vivemos em matéria de integração econômica e que  essa experiência não deixará de influir no questionamento que alguns fazem a  respeito da evolução do Mercosul no futuro. Por outro lado, a integração econômica  torna-se mais complexa na medida em que os protagonistas - Estados membros e  empresas - começam a perceber a tensão existente entre o efeito disciplinar que  caracteriza um processo dessa natureza e suas próprias aspirações de preservar  a maior margem de manobra possível, que lhes permita agir em função de seus  respectivos interesses, sobretudo em matéria de políticas econômicas domésticas  e de relações com terceiros países. Em sua nova etapa - iniciada em 1º de  janeiro de 1995 e projetada para a meta do "Mercosul 2000", cujo  conteúdo específico ainda não foi definido, segundo instrução do Conselho de  Ministros ao Grupo Mercado Comum emanada da última reunião ministerial  realizada em Assunção, os países membros do Mercosul deverão esclarecer alguns  dos questionamentos acerca do seu futuro, se quiserem convencer, especialmente  seus cidadãos, os investidores e terceiros países, de que se encontram em condições  de evitar que lhes sobrevenha o mesmo destino de experiências passadas e se  quiserem superar as complexidades próprias do aprofundamento dos objetivos  perseguidos. Examinaremos primeiro alguns dos questionamentos mais relevantes  que costumam ser formulados e que incidem na agenda institucional e jurídica do  Mercosul. A agenda jurídico-institucional do  Mercosul. O alcance do Protocolo de Ouro PretoO Protocolo de Ouro Preto (dezembro de  1994) define os órgãos do Mercosul dotados de capacidade decisória como sendo  de "natureza intergovernamental". Pretendeu-se desse modo eliminar,  expressamente, a possibilidade de que os mesmos fossem considerados como órgãos  "supranacionais", isto é, órgãos comuns aos quatro parceiros  integrados por funcionários independentes que, no exercício de suas funções e  alem de não depender nem receber instruções dos respectivos governos, pudessem  adotar normas jurídicas diretamente aplicáveis ao ordenamento jurídico interno  de cada um dos sócios.
         Tampouco se previu, nesse instrumento  jurídico multilateral internacional, um efeito jurídico imediato do direito  derivado, ou seja, uma relação direta entre as normas emanadas dos órgãos  comuns de natureza intergovernamental - o Conselho do Mercado Comum, o Grupo  Mercado Comum e a Comissão de Comércio - e os sujeitos de direito interno de  cada país membro. Ao contrário, o artigo 40 do Protocolo regula o processo de  incorporação explícita das normas emanadas dos órgãos do Mercosul no  ordenamento jurídico nacional. O que de fato é estabelecido pelo artigo 38 é o  compromisso dos países membros de adotar todas as medidas necessárias para  assegurar, em seus respectivos territórios, o cumprimento das normas emanadas  dos órgãos do Mercosul. A questão da hierarquia das normas  jurídicas, originárias e derivadas do Mercosul, nos respectivos ordenamentos  jurídicos internos dos países membros não se acha explicitamente resolvida no  Protocolo de Ouro Preto. Tampouco se estabeleceu um órgão jurisdicional comum.  Não há, portanto, a possibilidade de que essa questão seja solucionada pela  jurisprudência de uma Corte, como ocorreu na Comunidade Européia, a partir das  sentenças liminares da Corte de Luxemburgo. A questão acima referida não é de modo  algum insignificante. Ao contrário, sua incidência sobre a segurança jurídica  no processo de integração econômica é decisiva. E mais significativa se torna  ainda em face das exigências de flexibilidade instrumental que emanam de  realidades econômicas - internas, regionais e internacionais - sumamente  complexas e dinâmicas. Examinaremos alguns aspectos de uma das  questões de maior relevância prática em relação ao futuro do Mercosul, a tensão  entre as exigências de segurança jurídica e as de flexibilidade operacional,  sob cuja ótica deverá ser focalizada a questão mais complexa da hierarquia da  ordem jurídica do Mercosul nos respectivos sistemas jurídicos nacionais. Serão  extraídas algumas conclusões a respeito de medidas orientadas para aumentar o  grau de segurança jurídica e, ao mesmo tempo, institucionalizar a flexibilidade. Duas perspectivas orientarão a análise  apresentada a seguir. A primeira é a do investidor, ou seja, a perspectiva de  quem é convidado para investir em função do novo e ampliado espaço econômico  gerado pelo Mercosul. A segunda é a do déficit institucional, isto é, a  defasagem que se percebe entre os objetivos perseguidos pelo Mercosul, os  instrumentos de política comercial já vigentes e a sua estrutura  jurídico-institucional [1]. Os compromissos jurídicos do MercosulO Tratado de Assunção, firmado cm março  de 1991 pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, estabeleceu-compromissos de  incontestável importância para o desenvolvimento do comércio e dos  investimentos no espaço econômico de seus quatro signatários.
 Um dos seus objetivos foi assegurar aos agentes  econômicos fácil acesso a um vasto mercado potencial de duzentos milhões de  consumidores e um produto interno de cerca de m trilhão de dólares, estimulando-os  dessa forma a investir e a introduzir novas tecnologias. De acordo com a teoria  econômica e a experiência histórica, seriam auferidos ganhos em termos de  eficiência e de produtividade; as empresas tornar-se-iam mais competitivas nos  mercados mundiais e os consumidores se beneficiariam, posto que receberiam  melhores produtos a preços mais convidativos. Muitos investidores logo captaram os  sinais enviados aos mercados pelos quatro governos, especialmente a partir de  1990, e trataram de investir, equipar-se e racionalizar suas produções,  celebrando inclusive alianças com outros empresários. Novos investidores estão  seguindo os mesmos passos, tendo em conta que a decisão no sentido de avançar  para um mercado comum, a começar de um espaço de livre comércio e de uma união  alfandegária, foi plenamente reafirmada com o cumprimento do compromisso do estabelecimento  de uma união alfandegária, medida efetivada com a entrada em vigor desta em 1º  de janeiro de 1995. Tudo indica que a tendência do mundo dos negócios é de  levar a sério o Mercosul. Nesta postura está encerrada a perspectiva de um  horizonte de mais emprego e bem-estar para os cidadãos de seus países membros. No resto do mundo, não apenas os  investidores como outros países querem levar a sério o Mercosul. Daí, por  exemplo, a iniciativa européia de negociar um acordo modelo de cooperação  inter-regional assinado em dezembro de 1995, a fim de preparar o terreno para uma  aliança transatlântica de conteúdo político e econômico, a ser concretizada tão  logo o Mercosul complete o desenvolvimento de sua união alfandegária. No plano hemisférico,  os Estados Unidos e seus sócios no NAFTA reconhecem o Mercosul como um dos  protagonistas centrais do processo de construção de uma área de livre comércio  continental, a partir do plano de ação acordado na Cúpula das Américas, em  dezembro de 1994, e dos resultados da Conferência Ministerial de Comércio,  realizada em Denver em julho de 1995. Dois compromissos assumidos no Tratado de  Assunção são importantes para os que investem em função do mercado ampliado que  lhes foi prometido. Ambos se referem às condições efetivas de acesso aos  respectivos mercados, a partir do território de um dos sócios ou de um terceiro  país. O primeiro diz respeito ao direito de  acesso, de 1º de janeiro de 1995 em diante, ao mercado de bens de um dos países  membros a partir do de outro sócio, sem ser preciso pagar gravames ou sofrer  qualquer outra restrição. Trata-se do compromisso jurídico estabelecido no  Tratado de Assunção de uma tarifa zero sem nenhum outro tipo de restrição não  tarifária. Em resumo, assemelhar no que concerne a condições de ingresso, o  mercado dos quatro parceiros a um grande e único mercado interno. O segundo compromisso diz respeito ao  direito a um tratamento tarifário comum para os bens oriundos de terceiros  países. Este compromisso é complementado pelo que estabelece uma disciplina coletiva  em matéria de políticas comercial vis-à-vis terceiros países. O direito de acesso irrestrito aos  respectivos mercados, jurisdicionalmente protegido, é exatamente um dos traços  fundamentais característicos dos principais acordos contemporâneos de livre  comércio e integração, como o do Mercosul, o do Nafta e o da União Européia.  Sua importância econômica é enorme, dada a incidência crucial que tem sobre  decisões de investimento e de localização industrial, envolvendo vultosos  capitais, com importante reflexo nos níveis de emprego. Num contexto de  assimetrias em relação ao tamanho dos respectivos mercados, a percepção da  falta de firmeza jurídica desse compromisso - quer por excessivas imperfeições  legais ou pela percepção, de insustentabilidade política a longo prazo -,  poderia ser um fator decisivo para a localização de investimentos produtivos no  mercado maior. Com efeito, o direito de acesso  irrestrito ao mercado americano constituiu um dos fatores decisivos- pelo menos  do ponto de vista econômico - que explicam o interesse do Canadá, cm primeiro  lugar, e o do México em seguida, pela celebração de um acordo de livre comércio  com os Estados Unidos. É o que se denominou de "seguro contra o  protecionismo", ou seja, contra medidas restritivas oriundas de atos  unilaterais discriminatórios e passíveis de serem aplicadas, especialmente pelo  país ou países com mercado de maior tamanho relativo. Finalmente, o direito de acesso  irrestrito aos mercados jurisdicionalmente protegidos por um órgão independente  comum, a Corte de Luxemburgo, constitui um dos principais fatores econômicos  que explicam o interesse de países como a Espanha e Portugal, primeiramente, e  os do Leste Europeu, a seguir, em incorporar-se ao mercado único europeu. O  ingresso no MCE, que assegura a esses países acesso irrestrito a mercados como  os da Alemanha, França ou Grã-Bretanha, converte-se, pois, em poderoso estímulo  ao investimento nas suas próprias economias, de menor tamanho relativo, permitindo-lhes  potencializar outras vantagens competitivas que possam porventura possuir ou  desenvolver. Sem a garantia efetiva desse direito a  todos os cidadãos dos países membros de um acordo comercial, pela via de sua  proteção jurisdicional - seja arbitrai ou judicial -, não existe a possibilidade  do desenvolvimento de um processo de integração econômica entre nações  soberanas. É precisamente a imposição de limite às ações unilaterais  discricionárias não previstas no pacto social, independente das razões que as  justifiquem que constitui a essência da distinção entre um processo de  integração econômica e outras formas de cooperação comercial e econômica entre  nações. À questão da segurança jurídicaO acima exposto permite que se entenda a  grande importância prática que tem para os investidores e demais operadores  econômicos a definição precisa do verdadeiro alcance jurídico dos compromissos  derivados do Tratado de Assunção, especialmente os referentes às condições de  acesso aos respectivos mercados.
 No que concerne aos compromissos  assumidos, repetem-se a seguir algumas das indagações mais significativas que  costumam ser feitas: Trata-se tão-somente de "compromissos  indicativos" ou de "imperativos éticos" que implicam a obrigação  de cada signatário procurar a consecução dos objetivos perseguidos, dispondo,  porém de ampla margem para formas de comportamento unilateral e discricionário  que alterem as regras do jogo pactuadas? São compromissos que os Estados  assumem e que geram para eles responsabilidades internacionais, consoante o  artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969), embora não  suscitem necessariamente direitos exigíveis por parte de sujeitos de direito  interno? Ou se tratará, ao contrário, de compromissos assumidos pelos Estados  que de fato geram direitos exigíveis pelos particulares no respectivo  ordenamento jurídico interno? E, sendo este o caso, quem ampara jurisdicionalmente  os direitos assim criados? Apenas a respectiva justiça nacional poderá fazê-lo?  Ou poderá fazê-lo um órgão jurisdicional comum e independente da vontade dos  governos nacionais? Trata-se, então, de pautas voluntárias de conduta ou de  verdadeiras normas jurídicas que estabelecem uma disciplina coletiva entre os  sócios, jurisdicionalmente tutelados, a cuja discrecionalidade são impostos  limites reais? Do modo como essas perguntas serão  respondidas dependerá o grau de credibilidade que os compromissos acima focalizados  terão para os investidores, e conseqüentemente a sua eficácia, medida pela  capacidade efetiva dos mesmos de suscitar comportamentos favoráveis ao  investimento e à transformação produtiva. Dependerá igualmente de tais  respostas a capacidade de negociação externa adquirida pelos quatro sócios do  Mercosul perante terceiros países. No caso argentino, a resposta pelo menos  parcial a essas perguntas pode ser analisada à luz da sentença da Corte Suprema  de Justiça da Nação (C.572.XXIII, Cafés La Virgínia SA s/apelação  - por denegação de reclamação - de 13 de outubro de 1994) e da reforma  constitucional de 1994. A.  importância dessa sentença reside no fato de que ela propicia algumas respostas  concretas às perguntas acima formuladas relativamente a ocorrências anteriores  à entrada em vigor da reforma constitucional c a compromissos assumidos pela  Argentina no contexto de um acordo internacional de características semelhantes  às do Tratado de Assunção, ou seja, o Tratado de Montevidéu de 1980, que  estabeleceu a Associação Latino -Americana de Integração (ALADI) [2]. Nesse caso, entretanto, sua importância  transcende a matéria sob consideração. No momento em que a Argentina, da mesma  forma que seus três parceiros, assumiu por decisão soberana sérios compromissos  na esfera do Mercosul, os quais condicionam fortemente a sua liberdade de ação  futura em planos relevantes de sua política econômica e comercial, vale a pena  que nos questionemos sobre o valor que tem para a nossa comunidade c para seus  interesses nacionais - o mesmo se repetindo em relação aos três outros países  membros do Mercosul - o não estabelecimento de precedentes de comportamento  contrários ao direito que logo possam ser invocados pelos demais parceiros,  para, por sua vez, incorrer numa juridicidade à "Ia carte"e meramente  "indicativa". Conforme assinala o Juiz Boggiano em seu voto no caso  acima referido, "não vá ocorrer que, ao mesmo tempo em que nos dispomos a construir  a cúpula (referindo-se certamente à culminação do período de transição previsto  pelo Tratado de Assunção para que se criassem as condições de funcionamento da  união alfandegária, em primeiro lugar, e do mercado comum, a seguir),  enfraqueçamos o cimento". As questões suscitadas pelo caso  "Cafés La Virgínia"  são, pois, transcendentais para o futuro do Mercosul. Uma interpretação como a  que foi dada pelo representante do fisco a respeito de que os compromissos  assumidos no Tratado de Montevidéu de 1980 revestem tão-somente um caráter  indicativo e podem ser unilateral mente modificados significaria a introdução  de um elemento de grande insegurança jurídica e afetaria a eficácia de todo o  Mercosul, já que os investidores e demais operadores não veriam como realmente  levar a sério os sinais enviados ao mercado pelos governos a partir da  assinatura do Tratado de Assunção, no sentido de que iriam efetivamente dispor  de um mercado ampliado. Ante o argumento dos governos de que a partir de 1º de  janeiro de 1995 o mercado seria de duzentos milhões de consumidores, surgiria  logo esta pergunta: somos de fato duzentos milhões? A reforma de 1994 da Constituição  nacional contribuiu, no caso da Argentina, para deixar absolutamente clara a  primazia dos tratados em relação às leis (artigo 75, inciso 22), E quanto aos  tratados de integração, fica igualmente explícito que "as normas ditadas  em sua conseqüência revestem hierarquia superior à das leis" (artigo 75,  inciso 24). No que concerne ao Mercosul, entretanto,  permanecem válidas muitas indagações a que a sentença acima referida, por  razões óbvias, não responde. Elas, entretanto, deverão ser esclarecidas ao  longo da evolução do próprio Mercosul e de suas estruturas jurídicas c institucionais.  Faremos aqui menção de algumas apenas: 
        
        a) O  que poderá ocorrer se os outros países membros, ao interpretarem os compromissos  jurídicos derivados dos Tratados de Montevidéu c de Assunção, hão lhes  atribuírem o mesmo alcance que foi dado na sentença acima citada?
          
         b)  Em  tal caso, como se interpretaria o alcance do artigo 2° do Tratado de Assunção  que estabelece que "o Mercado Comum estará fundado na reciprocidade de  direitos e obrigações entre os Estados partes"? c) Haveria  reciprocidade se as obrigações assumidas fossem interpretadas com diferente  alcance jurídico pelos sócios e se algum deles considerasse, por exemplo, que  esses compromissos teriam tão-somente valor indicativo ou gerariam direitos e  obrigações internacionais apenas para os respectivos Estados, não sendo  necessariamente aplicáveis aos seus sujeitos de direito interno? d) Como  se garantiria no futuro uma interpretação uniforme de regras do jogo comuns? e) Se a interpretação for deixada ao  livre arbítrio das jurisdições nacionais, não poderão ocorrer sérios desníveis,  em conseqüência de diferenças marcantes na apreciação do alcance das regras de  jogo comuns? A nosso ver, essas indagações não tiveram  resposta satisfatória no Protocolo de Ouro Preto, de dezembro de 1994. Pelo  contrário, penso que o Mercosul deverá no futuro imediato explicitar novamente  o alcance de seu ordenamento jurídico e de sua estrutura institucional. Foi o  que reconheceu o Presidente do Uruguai, Júlio Sanguinetti, quando em  declarações ao jornal La Nación,  de Buenos Aires, do dia 26 de agosto de 1995, assim se expressou em resposta a  uma pergunta sobre as questões pendentes no Mercosul: "A principal é a  questão institucional. Esta é a sua maior falha. Temos apenas uma Comissão de  Comércio que se reúne esporadicamente. E preciso constituir um corpo permanente  que estude e discuta de forma contínua os problemas que forem surgindo. Até  agora tudo tem-se limitado aos encontros entre Presidentes ou Ministros, findos  os quais cada um toma a sua pasta c vai embora. Ainda que esta possa parecer uma  sugestão cruel, está faltando burocracia."  Algumas das indagações acima feitas e  outras mais que poderiam ser acrescentadas são úteis no momento em que os quatro  parceiros tomam o caminho que levará ao pleno desenvolvimento do Mercosul, para  o qual o Conselho previu, no chamado Mandato de Assunção (julho de 1995), que o  Grupo Mercado Comum preparasse um plano de medidas cuja apreciação será feita  pela Reunião de Cúpula de dezembro de 1995. Mais importantes se tornam ainda  essas indagações se for levado em conta que o próprio pacto constitutivo do  Mercosul tem tido a sua orientação quase totalmente voltada no sentido da  transição para essa nova etapa. Quer isso dizer que o próprio contrato entre os  quatro sócios não propicia, a partir de 1º de janeiro de 1995, um adequado  enquadramento jurídico e institucional para os ambiciosos objetivos do  Mercosul. Nesse sentido, é possível fazer estas  indagações, complementando as formuladas acima: 
        
        a) As regras do jogo que tiverem  origem no Conselho do Mercosul ou nos outros órgãos dão suficiente garantia  jurídica aos investidores e a outros operadores econômicos da solidez dos  compromissos assumidos? b) Esses  compromissos não seriam facilmente modificáveis por sucessivos atos jurídicos  do próprio Conselho que mudassem as regras do jogo relativamente ao acesso aos  mercados ou às condições de concorrência econômica, ou alterassem os prazos  para a vigência, por exemplo, das novas listas de exceção?,           c) Não haveria então o risco de cair-se na  situação vivida tanto na ALALC como na ALADI - a contínua alteração de regras  do jogo e de prazos -, que acabou por condená-las à ineficácia e, finalmente,  ao esquecimento? d)  Se as decisões forem adotadas por maioria e não por consenso, como se  controlaria a sua legalidade?  e)  Seria possível a cada parceiro comprometer-se a observar uma disciplina  coletiva em matéria de políticas econômicas e comerciais sem que ficasse  claramente definida a juridicidade de todo o processo de formulação e aplicação  das decisões? As perguntas cruciais são, certamente,  muito mais numerosas. As que foram enunciadas a título ilustrativo mostram,  entretanto, a seriedade das questões a serem encaradas, para que não se venha  no futuro nem a afectar interesses nacionais legítimos de cada parceiro, nem a  condenar o processo do Mercosul à inoperância ou - o que é pior - a tornar-se  uma fonte permanente de conflitos não solucionados, que terminarão por  perturbar o excelente clima que tem caracterizado o relacionamento político,  sobretudo entre a Argentina e o Brasil, nos últimos 10 anos. A questão da flexibilidadeO Mercosul está sujeito a exigências  contraditórias. Uma delas é a da segurança jurídica, já referida. Outra é a da  indispensável flexibilidade dos compromissos jurídicos, a fim de levarem conta  a tripla dinâmica de mudança emanada do contexto internacional, dos processos  internos de estabilização econômica e transformação produtiva, assim como do  desenvolvimento das interações econômicas entre os sócios em conseqüência do  próprio sucesso do Mercosul.
 No primeiro semestre de 1995, em parte  como reflexo do chamado "efeito tequila", tornou-se evidente que o  problema da tensão segurança jurídica-flexibilidade será um dos mais difíceis  de solucionar na evolução do Mercosul. Foi dito acima que o estabelecimento de  boas regras do jogo é essencial ao sucesso do Mercosul. Essas regras  condicionam a eficácia do projeto, ou seja, a consecução dos resultados que se  têm em mira. Além  disso, emitem sinais para os mercados que, se forem bem captados pelos agentes  econômicos, podem traduzir-se nas formas de comportamento econômico desejadas,  como, por exemplo, a de aumentar o investimento produtivo cm função do espaço  ampliado. Para o efeito acima assinalado, as regras  do jogo deverão possuir estas duas qualidades: a transparência, isto c, o fácil  acesso a seus textos, que se consegue com a sua oportuna publicação no Boletim  Oficial; e a clareza, isto é, o fácil acesso a seu conteúdo e mensagem, que se  consegue com racionalidade econômica e precisão na linguagem jurídica. Todavia, como também foi ressaltado  antes, é crucial que se conte com razoável grau de previsibilidade das regras  do jogo. E esta a exigência natural de um dos principais destinatários dos  sinais que os governos têm enviado ao mercado desde que assinaram o Tratado de  Assunção: o investidor disposto a correr riscos em função do mercado ampliado  que lhe foi prometido. O investidor pode compreender a  necessidade de flexibilidade na aplicação dos instrumentos do Mercosul. Ela é  conseqüência natural da dinâmica econômica tanto internacional como doméstica  de cada um dos parceiros. O que ele não consegue compreender é a  mudança inesperada das regras do jogo mediante atos unilaterais discricionários,  ainda que estes sejam a seguir legitimados pelos órgãos do Mercosul. Mas não se  trata apenas do fato de que desse modo se afeta a segurança jurídica. Também  podem ser afetados interesses legítimos de quem investiu em resposta aos sinais  emitidos pelos governos. Mais ainda: é possível afetar a credibilidade de todo  o processo de integração e das políticas, econômicas dos sócios. Daí, pois, a relevância da imposição de  limites à flexibilidade instrumental do Mercosul. É possível fazê-lo através  precisamente da institucionalização da flexibilidade. É parte da essência de um  processo voluntário de integração econômica entre nações soberanas que  preservam uma ampla margem de liberdade de ação convencer os operadores  econômicos -internos e externos - da decisão tomada pelos governos no sentido  de limitar efetivamente a própria capacidade de atuar unilateral e  discricionariamente nas matérias explícitas livremente submetidas a uma  disciplina coletiva. As propostas para a agenda jurídico-institucionalJean Monnet foi quem deu origem, com suas  iniciativas, ao processo de integração européia, quando em 1950 inspirou o  Plano Schummann, o qual levou em 1952 à assinatura do Tratado de Paris que  estabeleceu a Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Jean Monnet não era  economista. Era, sim, um homem eminentemente prático. Como havia sido empresário,  estava acostumado com o valor que têm os contratos e as regras do jogo nas  economias de mercado. Também era francês. Conhecia a importância histórica da  decisão política de compartilhar mercados e recursos com a Alemanha. Por isso,  a primeira providência que tomou tão logo sua iniciativa foi aceita pelo gênio  político de Schumann e Adenauer foi solicitar a colaboração de eminentes  juristas franceses. Paul Reuter e Mauricc Lagrange, entre outros, redigiram com  admirável precisão de técnica jurídica o que logo seria o Tratado de Paris,  antecedente imediato do Tratado de Roma que em 1957 estabeleceu o mercado comum  europeu.
 Jean Monnet agiu assim porque era um  homem prático, e não porque tivesse uma mentalidade juridicista. Sabia que a  melhor tutela dos interesses nacionais da França era o Direito. Mercados e  recursos comuns requeriam instituições e regras de jogo comuns. Seus juristas  não pensaram em órgãos que estivessem acima dos Estados. De fato pensaram  nestas duas instituições: a então vigente Alta Autoridade (precursora da atual  Comissão Européia) e a Corte de Justiça. Essas duas instituições asseguravam  uma visão comum e autônoma de parte não dos Estados, mas antes do respectivo  Poder Executivo nacional, na hora de definir regras do jogo, zelar por sua  legalidade e interpretá-las. É difícil entender a história posterior da  integração européia sem uma compreensão do papel decisivo desempenhado por  essas instituições comuns. No caso do Mercosul, está claro que não  se trata de copiar instituições européias e menos ainda de gerar grandes burocracias.  Trata-se, em primeiro lugar, de cada participante inquirir seriamente, partindo  da respectiva ótica nacional, sobre a eficácia que pode ter uni processo de  integração econômica voltado para o investimento e a modernização, mas sem uma  estrutura institucional que propicie garantias suficientes de que o  comportamento de um Estado, no âmbito da disciplina coletiva, se orientará não  só por considerações fundadas certamente cm realidades econômicas e políticas,  mas também pela vigência de regras jurídicas dotadas de suficiente força para  serem efetivas, ou, como nos ensinou Charles De Visscher, para penetrarem na  realidade.  Traía-se, em segundo lugar, de dar  respostas adequadas às demandas formuladas nos campos jurídicos e  institucionais. Importa, entretanto, que as respostas sejam suficientemente  consistentes para levar os investidores a crer que os compromissos assumidos  serão efetivos, sobretudo no que respeita ao acesso irrestrito aos respectivos  mercados e à preservação de condições adequadas de concorrência econômica.  Para a consecução de tal objetivo não é  necessário que todas as respostas às questões institucionais e jurídicas sejam  formuladas de imediato. Ao contrário, convém que a definição da arquitetura institucional  se desenvolva paulatinamente, com fundamento na experiência acumulada. O  recomendável é um processo incrementai cm que o aperfeiçoamento jurídico e  institucional seja acompanhado pelo aumento da interdependência econômica, o  aperfeiçoamento da união alfandegária e a posterior construção do mercado  comum. Entretanto, também é recomendável que  algumas das perguntas decisivas comecem à ser respondidas no momento em que os  quatro países passarem ao desenvolvimento da etapa da união alfandegária orientada  para a formação plena do mercado comum. Por ora, não se afigura necessário nem  conveniente a criação, por exemplo, de uma Corte de Justiça. Poder-se-ia,  entretanto, começar a atribuir certa competência a um colégio de árbitros,  formado com integrantes do próprio mecanismo estabelecido pelo Protocolo de  Brasília, para o caso de sobrevir alguma dúvida acerca da interpretação dos  compromissos jurídicos assumidos a partir do Tratado de Assunção, Algumas  sugestões nesse sentido foram formuladas já em 1965 pelo Governo do Chile, no  âmbito da ALALC. Poder-se-ia inclusive limitar a competência desse colégio de  árbitros, quando se tratasse de: um parecer independente em conexão com a  aplicação de regras do jogo em matéria de práticas desleais de comercio e de concorrência  econômica. Parece igualmente conveniente transformar  a atual Secretaria Administrativa em um secretariado técnico dotado de  competência semelhante à que tem, por exemplo, o Diretor Geral da Organização  Mundial de Comércio. Numa primeira etapa, essa competência poderia  concentrar-se na esfera das políticas comerciais comuns e na defesa do comércio  e da concorrência econômica. Poder-se-ia pensar ainda no  estabelecimento de serviços técnicos comuns orientados para questões  específicas, como as que foram mencionadas no parágrafo anterior. Os serviços  técnicos comuns poderiam ser prestados por grupos de especialistas  independentes, cuja escolha seguiria os mesmos moldes pelos quais são  designados os árbitros, a partir de listas especiais elaboradas pelos países e  das quais constam inclusive técnicos de terceiros países. Numa segunda etapa,  esses serviços poderiam contar com técnicos permanentes e constituir o embrião  de uma instituição semelhante aos atuais serviços comunitários subordinados às  diversas direções da Comissão Européia. O orçamento necessário poderia provir  de contribuições dos governos ou, melhor ainda, de um "imposto comum"  oriundo de pequeno percentual da tarifa externa comum. Tal imposto seria o  embrião do financiamento de um orçamento do Mercosul que poderia até mesmo  incluir programas comuns de reconversão industrial c de qualidade c  produtividade, orientados principalmente para as pequenas e médias empresas. Também pareceria útil prever a figura de  um ombudsman do Mercosul, para defender os interesses dos investidores,  consumidores, .trabalhadores e cidadãos no processo de implementação e  cumprimento dos compromissos assumidos pelos quatro sócios no Mercosul. Quanto ao limite da flexibilidade no  âmbito do Mercosul, este deferia ser definido por manifesta e inequívoca  decisão política no sentido de não se alterar o direito adquirido de acesso  irrestrito aos respectivos mercados de parte dos produtos já beneficiados pelo  regime de união alfandegária: essa medida-.implica, sem dúvida alguma, o  respeito da tarifo zero e a não aplicação de restrições não tarifárias - de  toda e qualquer natureza - aos bens não incluídos nas listas de adequação final  união alfandegária. Não respeitar esse limite seria introduzir uma falha grave  na estrutura do Mercosul. Entretanto, nos casos - como o dos  produtos incluídos nas listas de adequação final e nas de exceções à tarifa  externa comum - em que as regras do jogo prevêem a possibilidade de mudanças,  cabe aos empresários o direito legítimo de pretender que as eventuais  alterações tenham fundamento e sejam adotadas por meio de procedimentos  transparentes e participativos, levando em conta os critérios econômicos  implícitos nas respectivas regras do jogo. É preferível determinar expressamente a  aplicação de dispositivos de segurança quando situações de emergência econômica  assim o exigirem, ou se houver evidência de problemas graves incidentes sobre  produções nacionais em conseqüência do Mercosul. Caberia, entretanto,  determinar que tais medidas somente forem aplicáveis por razões fundadas,  apreciadas por técnico independentes, e mediante procedimentos precisos e  públicos que dessem direito a intervenção na esfera de outros produtores e,  especialmente, na dos consumidores. Caberia inclusive prever, para esses casos  excepcionais, um procedimento simples de apelação à Comissão de Comércio e ao  sistema de solução de controvérsias, mediante consulta prévia a uni painel de  técnicos independentes. Tais, medidas contribuiriam para a  consecução do objetivo de institucionalização da flexibilidade, fortalecendo-se  desse modo a segurança jurídica e, por conseguinte, a credibilidade dos  investidores no Mercosul. |